MULHERES ESCRITORAS

Escritoras de língua portuguesa no tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo em Portugal, África, Ásia e países de emigração

 


Mangualdense de raiz, sem estudos formais, o envolvimento familiar, sobretudo o prolongado convívio com o pai, com quem manteve comprovada cumplicidade intelectual, e o acesso à vasta e atualizada biblioteca, incluindo assinaturas de revistas e jornais estrangeiros, deram a Ana de Castro Osório uma formação abrangente, muito contribuindo para a decisão de se tornar escritora. Com quinze anos, ainda em Mangualde, prendeu-se de amores por António de Meneses e também foi nesta terra beirã que travou amizade com Camilo Pessanha (1867-1926), amigo pessoal do irmão Alberto, visita da casa e que, por sua vez, teve uma paixão, não correspondida, por si.
 
Com a partida para Setúbal, lugar onde já estaria a viver em 1893, quando acompanhou o pai que ali fora colocado como juiz, o seu sonho começou a concretizar-se: aí residiu dezoito anos, até 1911, publicou os primeiros escritos conhecidos (1895-1897) e conheceu Francisco Gomes Paulino de Oliveira, com quem casou a 10 de março de 1898. Na cidade sadina nasceram os dois filhos: João Osório de Castro e Oliveira (1899-10/11/1970) e José Osório de Castro e Oliveira (1900-03/12/1964).
 
O matrimónio com Paulino de Oliveira, poeta, propagandista republicano e fundador de jornais, contribuiu para acentuar a dedicação à escrita e despoletar o empenhamento cívico e político: fomentou saraus literários; estabeleceu laços com republicanos e vultos da cultura; envolveu-se na fundação da Escola Liberal; erigiu a Casa Editora Para as Crianças; e assegurou os negócios do marido quando, na sequência da conspiração republicana de janeiro de 1908, se refugiou no Brasil, de onde só regressaria depois de derrubada a Monarquia; recebeu, a partir de setembro de 1908, as adesões à Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e interveio, em 1909, no Congresso do Partido Republicano.
 
Em Setúbal se lançou no empreendimento que a tornou nacionalmente conhecida e pô-la em contacto com crianças, jovens, educadores, homens de letras, jornalistas e políticos: a Coleção Para as Crianças, a primeira tentativa sistemática de criar uma Biblioteca Infantil Ilustrada de inspiração portuguesa destinada aos mais novos, mediante a publicação regular, às suas custas, de fascículos de histórias assentes, essencialmente, em contos tradicionais, histórias maravilhosas e fábulas, muitas das vezes adaptados, recriados ou traduzidos pela sua pena.

Também em Setúbal, evidenciou a consciência do atraso em que as mulheres viviam no início do século XX, sem direitos políticos, menorizadas pelo Código Civil, sujeitas à tutela dos pais e maridos, confinadas ao papel de esposas, mães, irmãs ou filhas e engrossando a taxa de analfabetismo, encaminhou a escritora para a reivindicação de direitos para o sexo feminino, tornando-a feminista: a feminista mais emblemática das duas primeiras décadas do século XX. A bandeira feminista ganhou raízes nos saraus literários de Setúbal e assumiu vários cambiantes, consoante o associativismo em que militava, já que por Ana de Castro Osório perpassaram vários feminismos, todos de natureza moderada, quer quanto às formas de luta, quer quanto à valorização dos papéis de mãe e de esposa nas tradicionais responsabilidades no lar e educação dos filhos.

Em 1905, publicou Às Mulheres Portuguesas, considerado por Regina Tavares da Silva “o manifesto do movimento feminista português”; em 1907, fundou o Grupo Português de Estudos Feministas com a finalidade de difundir o feminismo e doutrinar as portuguesas através de uma biblioteca; nesse mesmo ano, iniciou-se na Maçonaria, na Loja Humanidade, adotando o nome simbólico de Leonor da Fonseca Pimentel (1752-1799); em 1908, impulsionou a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, com o objetivo prioritário de engrossar a propaganda republicana, combater a Monarquia, pugnar pela República e defender o regime nascido em 1910, sem descurar a formulação de exigências específicas para as mulheres.

Acusada de ser mais feminista do que republicana, lutou por uma República ao serviço das mulheres, e não o contrário: no entanto, foi o invólucro republicano da Liga que proporcionou a Ana de Castro Osório outra visibilidade ao intervir no debate sobre a natureza do regime, tendo sido transformada em símbolo das mulheres republicanas.

A implantação da República evidenciou uma Ana de Castro Osório em transição do feminismo republicano para o sufragista, centrado no voto restrito para as mulheres, o qual ganhou espaço através da Associação de Propaganda Feminista, fundada com Carolina Beatriz Ângelo em maio de 1911 e que clamava pela outorga do voto feminino tendo por base a situação económica e cultural das mulheres. Conciliou a propagação do feminismo e a ação organizativa com a formulação pública das reivindicações feministas através de representações endossadas aos poderes políticos.

O desencadear da Guerra fez emergir a sua última fase feminista, a de feminista nacionalista, cuja prioridade era a defesa da intervenção do país ao lado dos Aliados e o apoio aos soldados mobilizados, o que será feito através da APF, da criação, em finais de 1914, da Comissão Feminina Pela Pátria e, a partir de março de 1916, da Cruzada das Mulheres Portuguesas, criada com Elzira Dantas Machado e que teve implantação nacional. Embora se tratasse de uma iniciativa da esposa do Presidente da República e Presidente da APF, coube à escritora o papel fulcral e nela permaneceu até 1933, não mais voltando a destacar-se enquanto líder feminista.

De certa forma, a Cruzada representou a concretização do sonho de Ana de Castro Osório de liderar uma organização patriótica de implantação nacional, sendo que se este feminismo nacionalista serviu para valorizar a importância social e económica das mulheres em tempos de guerra, também contribuiu para menorizar o papel das feministas como grupo de pressão, esvaziando-as num contexto de unidade nacional em que a “Pátria” se sobrepunha a todas as reivindicações.

A nomeação, em 1911, de Paulino de Oliveira para Cônsul em S. Paulo proporcionou-lhe uma experiência inolvidável, apesar da doença que vitimou, em 13 de março de 1914, o marido: partiu para o Brasil em finais de maio e os três anos que lá permaneceu reforçaram a convicção na possibilidade de constituir a Grande Aliança, cultural e económica, entre as duas nações, sonho retomado quando voltou, em 1922, para proferir uma série de conferências. Longe do país, cultivou proximidades e conservou a mesma capacidade de intervir e polemizar quando a República era denegrida pelos círculos da emigração monárquica, sem perder os contatos com a sua gente, amigos e correligionários.

Viúva aos 42 anos, assentou em Lisboa, no prédio da Rua do Arco do Limoeiro, onde viviam os pais e se passou a realizar as reuniões da APF e a funcionar a Casa Editora Para as Crianças, a Comissão Feminina Pela Pátria e a Redação e Administração de A Semeadora (1915-1918). Na capital, reatou, em 1915-16, o convívio com Camilo Pessanha.

Com a desilusão com o novo regime, por não se ver reconhecida pela República e pelo rumo que tomava, virou-lhe definitivamente as costas no final dos anos 10, a rutura consumou-se no início da década de 20 e passou, então, a dedicar-se quase exclusivamente à escrita, centrada na defesa dos valores da Pátria, da Raça e das mulheres enquanto geradoras de filhos e educadoras, à Cruzada e à Liga dos Combatentes da Grande Guerra, recusando ser condecorada pelo regime que ajudara a fundar e aceitou sê-lo pela Ditadura Militar saída do 28 de Maio de 1926.

Durante quase quatro décadas, entre 1897 e 1935, Ana de Castro Osório revelou-se figura ímpar enquanto escritora, autora de livros escolares, editora, periodista, pedagoga, publicista, conferencista, republicana e líder de organizações femininas e feministas do início do século XX, sendo ainda uma cidadã interveniente e atenta, reconhecida pelos seus contemporâneos, com quem estabeleceu alargada rede de sociabilidades e manteve prolixa e continuada correspondência com centenas de figuras públicas de quadrantes políticos e ideológicos antagónicos, antes e depois da República.

Pertenceu à geração dos republicanos que lutaram contra a monarquia, fizeram a revolução e governaram, nos escassos anos que durou, a 1ª República, e conviveu e conspirou com os principais vultos femininos que pugnaram por direitos para as mulheres e influenciaram a longa caminhada da emancipação feminina. Não passou desapercebida sob a Monarquia, a República, a Ditadura Militar ou o Estado Novo, mas foi sempre a escrita que norteou a sua vida, repartindo-se pela literatura infantil, contos, novelas, romances, peças de teatro, traduções, seletas, escritos doutrinários, conferências, discursos e colaboração em muitas dezenas de periódicos – femininos, feministas, republicanos, literários, locais, regionais ou nacionais, de educação e instrução –, tribuna privilegiada onde assegurou seções, assinou editoriais, redigiu centenas de escritos e aspirou ser remunerada profissionalmente.

Depois da notoriedade de décadas, patente na adesão de uma plêiade invulgar de personalidades – republicanos, monárquicos, autoridades da ditadura, governantes salazaristas, advogados, diplomatas, engenheiros, ex-combatentes da Guerra de 1914-18, jornalistas, professores, médicos, sumidades das artes, das letras e da ciência, além de companheiras de percurso – e de pessoas de todas as classes sociais às suas cerimónias fúnebres, ocorridas entre 23 e 25 de março de 1935, Ana de Castro Osório caiu num duradouro silenciamento que tem vindo a ser quebrado pela historiografia contemporânea e pela memória das lutas pelos direitos das mulheres, recolocando-a no devido lugar que teve na sua época.

Pela força, justiça e perenidade de algumas das ideias por que se bateu, Ana de Castro Osório ficará sempre associada aos movimentos a favor da emancipação das mulheres – defendendo a sua educação e instrução, a independência económica, a igualdade de direitos, o ingresso em profissões, o sufrágio feminino restrito, a lei do divórcio, salário igual para emprego igual – e ao triunfo da República, estando perpetuada na aguarela, de 1911, de Alfredo Roque Gameiro: a mulher, apenas uma, em primeiro plano, entre 161 dirigentes republicanos.

Ana de Castro Osório acreditou no seu valor intelectual e impôs-se por si própria no espaço público predominantemente masculino. Triunfou pela fortíssima personalidade, perseverança e vontade de deixar obra que marcasse o seu tempo, rompendo a esfera do privado a que os homens tanto gostavam de acantonar o sexo feminino. O seu legado pioneiro merece readquirir visibilidade e novas reinterpretações, bem como a sua vida, uma vida tão intensa e invulgarmente vivida no Portugal conservador da transição do século XIX para o XX.

 

João Esteves

 


Investigadora Responsável: Teresa de Sousa Almeida (https://orcid.org/0000-0001-6758-1565)

O projeto Escritoras de língua portuguesa no tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo em Portugal, África, Ásia e países de emigração visa integrar no património literário a escrita realizada por mulheres, promovendo o conhecimento, a desocultação e a difusão de escritoras que publicaram entre 1926 e 1974, assim como das suas obras, uma vez que, mesmo no que diz respeito ao século XX, o cânone da literatura portuguesa é essencialmente masculino.

Como citar: Almeida, Teresa de Sousa (Coord.). [2019]. Projeto "Escritoras de língua portuguesa no tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo em Portugal, África, Ásia e países de emigração".

Mulheres escritoras is licensed under CC BY-NC-SA 4.0

 


 

O IELT é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito dos projetos UIDB/00657/2020 com o identificador DOI https://doi.org/10.54499/UIDB/00657/2020 e UIDP/00657/2020 com o identificador DOI https://doi.org/10.54499/UIDP/00657/2020.