ONDAS[1]

Future shall somehow blossom out of the past...My theory being that the actual event practically does not exist, nor time either.

(Virginia Woolf, 1982)

1

Já estão amarelas e a cair as folhas da árvore que vejo da minha janela. Chegou o Inverno, e trouxe uma nova variante da pandemia, oriunda da África do Sul. É a Delta, já conhecida, que se desdobra num novo nome OMICRON. Soa a Guerra das Estrelas, a ter lugar numa África que se deixou ao abandono. Espera-se um mau Inverno, deste ponto de vista. Teme-se pela Economia, no Ocidente rico.

No entanto não é nisso que penso, ao acordar. É o que fazer daquela Mulher sentada na praia, junto ao mar, de olhos fixos no vaivém das ondas, imóvel como uma estátua.

Vai sempre ao cair do dia, quando o calor já não incomoda, e ali fica até quase de noite. Não há ninguém na praia. Minto há por vezes um par que chega, com seguranças ao lado. Um Ministro e a sua mulher, que pelos vistos não sentem o ridículo de ter ele um guarda de fato de banho mas com pistola enfiada nas costas do calção, bem à vista. E ela a guarda feminina, de biquíni, e com pistola também a  sair e a dar nas vistas de quem se cruzasse com eles.

Iam andando, pela areia fora, a fazer o quilómetro do dia. A Mulher junto ao mar, impávida, não se mexia. De resto era só ao sábado que eles apareciam.

A minha hesitação é que idade dar a esta Mulher: trinta anos, corpo esbelto, rosto suave, cabelo loiro comprido; ou antes oitenta anos, corpo que se adivinhava elegante, mas que a idade a levava a cobri-lo com um pano de algodão leve sobre o fato de banho inteiro.

É óbvio que não veriam o mesmo, naquelas ondas, aos trinta ou aos oitenta anos. Uma sonharia, a outra recordaria.

Agrada-me a ideia da idade maior e da recordação. Mas de quê ?

Num psiquiatra freudiano teria de puxar imagens da pequena infância. Tinha algumas.

Para uma mulher jovem não haveria interesse nenhum em recordar miudezas de infância, toda a gente tem, a menos que tivesse sofrido violência por parte de pais, ou amigos da família e fosse preciso, para seu equilíbrio, ajuda psicológica, ou outra. Mas está tanta matéria publicada sobre esses casos de ruptura emocional.

Já com a mulher de idade talvez fosse mesmo necessário uma ajuda, o refazer de um percurso que tivesse logo de início sido difícil e de que ela agora teria de se libertar. Mas esquecer era melhor remédio, de certeza. Deixar no fundo o que está afundado, não trazer à superfície sofrimentos renovados. Viver recordando, em vez de saudavelmente esquecer, passar adiante, não seria solução em nenhuma idade, e na velhice também não. Apagar da nossa vida quem nos fez mal é o conselho que eu daria. Mas o que fariam um psiquiatra, ou um psicólogo, e cada qual tem o seu método, não sei dizer.

Voltemos a essa praia de fim de tarde, não é sábado, o par ministerial não está por ali, a areia estende-se vazia e paralela ao mar de um modo quase infinito, mas a Mulher não se mexe, continua sentada, é a mulher de idade, envolta no seu pano de algodão macio, olhos fixos nas ondas, o vaivém suave de maré baixa, o pôr do sol no horizonte.

Em que pensava, se é que pensava, essa Mulher? Não tinha saudades de nada em especial, do seu passado, e não tinha projectos imediatos para um futuro com que não se preocupava. Vivia o dia dado. E da tarde o melhor era aquele momento na praia. Estava num hotel dos recém erguidos na falésia, podia ver o mar da janela do quarto, onde de manhã ficava a preguiçar, lia, estendida na cama, e finalmente ao fim do dia descia a falésia até ao seu lugar do costume na praia. Sentava-se na areia e assim ficava, de olhos fixos nas ondas. Não lhe corriam imagens pela memória, nada lhe ocorria de ideias, embalava-se num vazio que se tornara precioso.

Certa vez levou um livro consigo. Falava de Anjos. Mas não de entes grandiosos, sublimes no seu abraço que podia ser mortal, como os de Rilke. Falava deles como se fossem borboletas de asas coloridas, pousando de flor em flor as almas de cada um. Um livro para crianças?

Destes da moda, que imbecilizam mal a criança abre os olhos para o mundo?

Que mau gosto, pensou. De volta ao quarto deitou o livro para o cesto de papéis. Que ideia levar um livro para a praia. Na praia não preciso de nada.

À noite, para adormecer, não tomava comprimidos, abria a televisão e ficava a ver um documentário sobre leões, ou tigres. Animais soberbos, que depois se cruzavam nos seus sonhos. De dia era o vazio, na praia, de noite os sonhos com os animais mais nobres. Por que razão terá Blake escolhido o tigre como animal emblemático, nos seus poemas? Iria ler de novo esse poema, que começava por um chamamento, tiger, tiger...Na suprema beleza o mal supremo? E que mão poderosa o desenhara assim? Um deus antigo por certo.

Leões e tigres.  O leão tinha direito a nome para a fêmea: leoa. Do tigre dizia-se, nos documentários, a fêmea, as suas crias. Seria tigreza um estrangeirismo não aceite, não tinha direito a feminino, o tigre soberbo? Supremo emblema de uma masculinidade também ela antiga, arcaica mesmo, como o deus que o criara?

De noite, nos seus sonhos, passavam os animais mas não havia interrogações, tudo era como era, na sua naturalidade, de verdade muito bela e muito violenta.

Blake não hesita também ele em falar de Anjos. Ou melhor de um Anjo que visita uma bela Rainha Virgem que chora por ele, mas ele dobra as suas asas e vai embora, para depois voltar mais tarde. Tem este poema um tom de memória popular, pela rima, pela métrica, podia ser de cantilena de avó, ou de velha cozinheira, na hora da refeição, quando as crianças fogem e ela as quer ali junto à lareira.

Quando o Anjo volta a Rainha já não o quer.

Chegou tarde demais, ela armou-se entretanto de um escudo invencível: os cabelos cinzentos que lhe enfeitam agora a sua bela cabeça...  Até com os Anjos há um momento certo e um perdido. Quando se perde é para sempre.

 2

Olho para a mesa do sofá, carregada de livros. Uns li, outros ainda não, mas é bom saber que estão ali e se calhar um dia leio. Não, nem todos serão bons de ler, mas isso descubro nas primeiras páginas e ponho logo de parte. Para mediocridades não tenho tempo, nem paciência, nunca tive. Outros são difíceis e terei de ler mais do que uma vez. Difíceis em que sentido, perguntaria um crítico mais preparado (caso raro...) Os conceitos, ou a linguagem tão elaborada que não chega a perceber o que se passa? Se é prosa, onde se perde a narrativa? A consistência das personagens, ou mesmo só de uma, se não houver mais do que uma? E se é poesia, ah tanta coisa difícil, para lá das imagens, dos símbolos, do vocabulário fechado, para não dizer mesmo hermético ou de surrealismo livre e delirante...quantas e quantas vezes não será preciso reler para apanhar aquele fio secreto que se enrola no fundo do coração como novelo impossível de abrir sem o rasgar à força.

Um coração que se rompeu, talvez sem querer, mas por total inépcia.

Só não sabe, ou não sente, quem nunca leu os corações partidos de autores desde os mais antigos aos mais modernos. Os de agora não falam de corações, falam de sexo. Um sexo torturado, amargo, nunca feliz. Rápido, como o dos animais.

Felicidade, uma palavra que voltou a estar na moda, em tudo o que se escreve nas revistas sociais. Não percebem que tal coisa não existe, a não ser num imaginário impreparado. Numa criança o que vemos é alegria, sorriso ou gargalhada entregue. A criança de verdade feliz não sabe o que isso é, não lhe faz falta.

3

Também eu, como tantos outros autores volto sempre à Alice no País das Maravilhas. Leio a edição inglesa, mas ofereci às netas a tradução, excelente, de Margarida Vale de Gato. Também foi a excelente tradutora do Petit Prince de Saint-Exupéry, com aquele difícil conceito de aprivoiser que só nela descobri perfeito: cativar.

Cativar, ser capaz de cativar alguém, ou de se deixar cativar por outro. E a questão do outro coloca uma nova interrogação, que qualidade tem ele que lhe permite essa capacidade de cativar?

Alice é a interrogação e a perplexidade permanente, o Principezinho, nos diálogos com a Raposa, é a resposta, inesperada por vezes, mas que não deixa dúvidas. Saint-Exupéry leu certamente Lewis Carrol, o livro a que regresso sempre e que sempre me deixa com mais interrogações, tal como afirmou agora, numa entrevista, o célebre argentino devorador de livros, Alberto Manguel, de visita a Portugal.

Não digo por vaidade, mas também eu fui sempre devoradora de livros.

Li de tudo, desde aventuras de quadradinhos a policiais e à grande literatura, dos russos aos franceses e ingleses, e mais tarde americanos. Só tive relutância, alguma, aos neorealistas portugueses que o meu pai tinha por casa. Era amigo de muitos deles, e para mim isso não era razão bastante. Eu gostava de literatura capaz de temas maiores, paixões da alma, crimes e castigos, ou de uma libertária e surrealista criação, tão exaltante e sempre inovadora.

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Alice está com um livro na mão, lê ou semi-dorme ( o que levanta logo a primeira interrogação, estaremos já no domínio do sonho e do inconsciente? ) vê um coelho que corre exclamando é tarde, é tarde, como que assustado com as consequências do atraso, e Alice desata então a correr atrás dele, para ver o que sucede, para onde irá, etc. etc.

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Uma interpretação que tem sido feita por alguns: o coelho, símbolo de fertilidade, indicia uma puberdade ainda não reconhecida pela jovem, mas que será entendida em breve, com as experiências que ao longo da narrativa vai vivendo: uma menina que cresce, junto com o seu corpo, que ora cresce ora diminui, deixando-a confusa, pois ainda não atingiu o estado de mulher, fértil e procriadora.

Contudo não nos iludamos, não é por aí que o autor nos quer levar, a uma visão redutora de uma Alice que viverá algo de tão diferente. Teremos de ler tudo para perceber, e como disse Alberto Manguel, uma e outra vez. É isso que tenho feito, desde que me lembro. E vou voltar a fazer.

O Poço por onde cai: descida ao inconsciente, na nossa psique o espaço-tempo reduto de mitos ou símbolos arcaicos que ressurgem, se actualizam e renovam numa linguagem outra?

O cogumelo que se trinca - forma de interiorizar a lição?

A vaga de água, sabemos que Freud via o mar como a onda imparável das emoções recalcadas que nos podiam submergir e afogar para sempre, ou não, se finalmente integradas. Alice escapa, vai amadurecendo as reacções, torna-se mais cautelosa, mas sem perder a sua curiosidade, motor de todo o pensamento e do conhecimento e progresso individual e colectivo.

 Lição para todos nós, ainda hoje...

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A conversa orientou-se para receitas, desde o Pantagruel até à Maria de Lurdes Modesto, passando pela eterna Isalita das mães e das  avós, e agora reeditada pela Sá da Costa em bonita edição, ilustrada, fácil de ler na sua letra grande.

Não sei como se chegou às receitas de porco, que são tantas, como diz um humorista brasileiro que adoro, o Millôr Fernandes, " O porco não se dissipa, sepulto na própria tripa..." e às formas de matança, diferentes na ilha de São Miguel, nos Açores, ou na ilha do Pico.

O Pedro, hoje em dia apaixonado por questões de culinária, explicou: numa das ilhas o porco é sangrado de cabeça para baixo, noutra é de cabeça para cima, e dizem que faz toda a diferença.

O que me espantou é que ninguém aludisse ao processo cruel da matança, fosse qual fosse a posição da cabeça: com o animal rasgado vivo, chorando como uma criança, sangrando até morrer. Eu tinha ouvido esse choro, outrora, na praia de Mira, quando não estava ainda na moda. Tinha apenas uma pensão familiar simpática, perto da praia, e um talho que de noite matava os leitões que iam ser o prato do dia seguinte. Era terrível aquele choro, e desde aí nunca mais comi leitão.

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A Mulher da praia entretanto reparava, com o passar dos dias, que estava a ver cada vez menos o fio do horizonte. E não era a mudança de Estação, era mesmo ver menos. Não lhe agradava a ideia das injecções nos olhos, e outra operação era impossível. Mas ler era ainda tão fácil, com óculos, e era tão bom. Viveria esses momentos felizes à noite, já na cama, em vez de ver só televisão.

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Será imperativo, para um escritor, estar sempre a escrever? Claro que não. Escrever é quando sentir um impulso mais forte, que o obrigue. Senão é melhor ir guardando no gavetão da memória as frases que lhe ocorram, as ideias, se as tiver, as imagens, e um dia quando se sentir mesmo inspirado, abra o gavetão e deite para fora tudo o que lá está fechado à espera. O que é imperativo não se perde, por definição mais tarde ou mais cedo impõe-se.

Já não sei quando foi que a Mulher, a idosa, no seu pano elegante, deixou de ir à praia ao fim da tarde. O Ministro e a mulher, com os seus seguranças, ao sábado continuavam a dar o passeio de um quilómetro.  Mas segui-los não tinha graça, não se passava nada, nem sombra de atentado, tentativa de roubo ou de súbito rapto por grupo de mergulhadores emergindo das suaves ondas do mar. Nada.

E a noite caía sozinha, sem a intrigante presença daquela mulher que antes descia a falésia até ali, e ali ficava a fixar o horizonte, horas sem fim. Estaria ainda no hotel, mas sem lhe apetecer sair? Estaria como, e onde?

Havia um antigo pinhal nas imediações do hotel. Era o pinhal do concelho, como diziam. E muita gente passeava por ali, a pé, de bicicleta e de carro nos caminhos mais largos, que viriam a ser estradas futuras. Mas não vejo a mulher a fazer nada disso, nem sozinha nem com amigos. Não parecia ter amigos, nunca se viu nenhum ao pé dela na praia.

E de repente houve aquela transformação da velha em jovem. Mesmo jovem, aos quinze anos, no seu grupo de Verão que todas as férias se reunia ali, para matar saudades, esquecer as aulas e os exames, ou os problemas de amores ou de família, apanhar sol, tomar banho, boiar, fingir que se era uma sereia e tentar seduzir o rapaz mais interessante do grupo. Era isso, então. Apostavam quem chegaria primeiro à rocha do Gigante, onde o mar escondia moreias perigosas, se os mordessem.

Era isso. Não uma mulher jovem ainda, de trinta ou quarenta anos, o corpo ainda esbelto, o rosto de traços delicados mas algo melancólico. Era uma adolescente de quinze anos, apaixonada por um dos rapazes do grupo, à espera de o ver nas férias de Verão. Durante o ano nunca se encontravam, ele andava no Colégio Militar, filho de um pai viúvo, severo, que nem no Verão se deixava ver com o filho, como se nada tivessem a ver um com o outro. Mas o rapaz não era a ela que prestava atenção, era a uma jovem morena, mais velha do que ele, baby-sitter de umas crianças francesas cujo pai tinha um barco à vela com que chegava à praia e fazia o encanto de todos. Era por ela que o rapaz visivelmente se tinha apaixonado, e os encantos da jovem adolescente nada lhe diziam, embora todos os anos se voltassem a ver. O tempo os definiria, ao passar, como amigos de infância, enquanto a baby-sitter acabaria por viver com o pai das crianças de quem se tinha ocupado.

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Agora sim, talvez tenha matéria para um princípio de conversa no próximo encontro com o meu médico-psiquiatra. Mas o mais provável é que faça como os outros, recomendar-me antes um psicólogo. São eles que agora ajudam - sorte deles, que antes eram desconsiderados e não tinham emprego.

Foi a pandemia que ajudou ou terá sido a moda? Seja como for, é positivo.

E as paixões adolescentes têm muito que se diga, mais nas meninas do que nos rapazes, elas sentimentais e sonhadoras, já com a química do desejo e do corpo a funcionar, eles a pensar mais na bola e nos cafés com os amigos.

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A consciência do corpo é mais precoce nelas do que neles. Eles não se interrogariam tanto, como Alice na conversa com a lagarta. De tanto mudar já não sabia dizer quem era, nem se alguma vez teria sido? E somos o que fomos? Ou já estaremos a ser outra vez outra coisa, conforme quem nos pergunta. Porque sabemos, hoje em dia, que o observador (aquele que pergunta) altera a natureza do observado, o que devia dar resposta e não consegue, pois está sempre a mudar.

Será esse o segredo do país das Maravilhas? Será essa a maravilha?

A mutação permanente? Seremos afinal uma espécie de vírus primordial e nada mais do que isso?

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Cabeças

Há anos que me dói a cabeça, sempre na mesma metade do lado esquerdo. Dor crónica, por vezes insuportável. Mas na metade do lado direito nunca me dói nada, o que é estranho. Porque embora podendo usar o lado direito, não consigo, pois essa metade está ligada à outra, presa por ela, que a impede de funcionar como devia. Nem os comprimidos usuais me ajudam.

Não sendo uma solução, sento-me e escrevo, para esquecer o que dói. Será a dor afinal mais uma variante, uma projecção do imaginário possível de ultrapassar? É impossível viver assim, com uma cabeça partida ao meio, em duas metades que não comunicam, mas estão ainda assim tão ligadas uma à outra. Estará na dor, desconhecida, um dos segredos da Criação?

Um logro, a ideia de que se pode ser feliz, imune ao que nos incomoda.

Ah, hoje faz anos que morreu Fernando Pessoa, irónico, por vezes sarcástico, mas que não conseguia esconder a sua busca de uma outra realidade, que o iluminasse e libertasse do peso deste mundo. Uma realidade outra, como a de Alice, talvez, mas que nunca o confundisse, num mundo de confusão.

Y.K.Centeno

(30 de Novembro de 2021)

 

 

[1] Texto de Yvette Centeno. Foi publicada uma primeira versão na Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências. Em futura edição será continuada como novela.

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