PARA ACABAR[1]

(abrindo os Sonhos, ou a contagem das horas...)

 

Trago dentro do meu coração,

Como num cofre que se não pode fechar de cheio,

Todos os lugares onde estive,

Todos os portos a que cheguei,

Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,

Ou de tombadilhos, sonhando,

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

(Álvaro de Campos, PASSAGEM DAS HORAS)

 

Sinto que tenho de continuar, embora faça dos Sintomas anteriores uma espécie de primeira parte que, se calhar, depois de tudo bem revisto, publico à parte.

Não posso parar de escrever.

Estamos em Abril, do ano 2018, fiz em Fevereiro 78 anos, o Binau fará em Junho 86 anos, e por aqui continuamos os dois, nas nossas vidas, de rotinas tranquilas, apenas interrompidas pela chegada de filhos ou netos, e um ou outro acontecimento, teatro, música, exposição de amigos.

Estar vivo é um privilégio, e eu no que fui escrevendo, entre 2013 e o início de 2018, apontei muitas mortes, muita dor à roda dessas mortes.

Aqui vou limitar-me a apontar sonhos, como fez Jung no seu Livro Vermelho, que estou a ler. Ou reflexões sobre algum tema em especial.

Tinha pensado na música das esferas de Platão a Shakespeare, o Timeu e as várias peças do dramaturgo inglês.
Mas tive um sonho que não consegui (também não tentei muito) abrir. “Num meu andar que está à venda, diz-me a senhora responsável que só uma pessoa tinha oferecido oitenta mil contos: 80.000. Não vendo assim, acho que o andar vale mais “.

Fixo um número, o 8.

E a intensificação do peso desse número: oitenta mil. A estes dias em que não me ocupei do sonho, outras ideias me ocorreram: a Sombra, ou as Sombras.

Não o que a Sombra esconde, mas o que a Sombra revela.

Pois sei, da alquimia, que da treva nasce a luz, mas para isso tem de haver um processo de transformação.

Vemos, na Flauta Mágica, de Mozart, que são as Damas da Noite que matam o dragão ameaçador ( a materia prima a sublimar) e que é a Rainha da Noite, no seu esplendôr lunar que pedirá ao Príncipe Tamino que procure a Princesa sua filha Pamina e a resgate das mãos do seu opositor solar que é o Rei Sarastro.

Ficando por aqui, é de uma primeira treva cósmica que nasce uma energia feita de amor (o Príncipe apaixona-se pela Princesa mal vê a sua imagem na medalha que lhe mostram) - e a sublimação que esse amor dos dois jovens induzirá no Templo (no Reino) que o Rei Sarastro domina.

Dá-se aquilo a que podemos chamar um Casamento Químico, uma Conjunção de Opostos, que a sublimação de treva e luz, espírito e matéria, operam, no sentido mais junguiano e alquímico do verbo (operar é realizar com sucesso a Obra). A luz vencerá a treva, a escura noite primeira será de novo devolvida a uma longínqua esfera, perdida algures no cosmos.

E o que significa, neste caso, uma tal coniunctio? Que nos primórdios da Criação imperava a Treva, cobrindo uma terra de abismo, e que foi preciso o Verbo actuante de Deus, ao dizer faça-se Luz, que da treva surgisse a luz que iria modificar, pela força da energia de um tão grande amor todo o maravilhoso processo do que viria a ser a Criação do mundo, com todos os elementos, os seres de todas as espécies e o mais perfeito de todos, o ser humano, inicialmente andrógino e perfeito na sua completude.

No Casamento Químico se reconstitui, ao fim e ao cabo, - é esse o motivo, razão de ser e segredo da Obra – o andrógino primordial, na sua perfeição, que se perdeu com a Queda. Tamino e Pamina são esse par refeito, Sarastro e a sua Rainha são o par antigo, primordial, pecador e desfeito. Refeita a unidade é ao novo par que o destino do Reino (do mundo) fica entregue.

Mas importa não esquecer o papel da Sombra.

Deixando agora de parte a obra de Mozart, o que é afinal a Sombra no espírito humano, na psique, suas manifestações? O que nos traz ela, de aviso, ou informação mais útil para o nosso percurso pessoal, em cada um dos momentos sejam eles mais propícios ou nefastos?

Digo Sombra, deveria dizer Sonho.

Pois é nos sonhos que a Sombra se manifesta. Tal como na obra de Mozart, contém uma lição. Mas difícil é muitas vezes entender, por isso se trata de sombra e assim se chama, em vez de luz.

A luz é a luz da Razão, mas a sombra é a da Emoção, nasce de outra zona da psique, não da consciência (que a dado momento da nossa História do Pensamento, sobretudo no século XVIII, se chamou mesmo de Razão Iluminada), nasce de um inconsciente ainda mal conhecido, ainda menos adivinhado, mas que na Sombra se manifesta, intervém e também ele, nas suas figurações, deseja ser amado.

A Criação foi a obra de amor de um Deus pelo mundo criado, nascido de um súbito impulso da sua imaginação, e a que deu forma,  numa totalidade de luz e sombra que se procura reconstituir, no segredo da alma, à medida que o nosso conhecimento avança. Podia não ter acontecido, mas aconteceu.

Gosto de citar Marie-Louise von Franz, num ensaio de 1980, ZAHL UND ZEIT, em que diz logo de início, sobre o Problema da Unidade de Psique e Matéria, o que a seguir traduzo:

“O problema da relação entre Psique e Matéria está, nos últimos anos, cada vez mais colocado no centro da discussão científica; mas é preciso reconhecer que estamos perante um Mistério não fundamentado que não conseguimos esclarecer. A par da Física Atómica é sem dúvida a grande descoberta que no início do nosso século foi feita, esta do Inconsciente, enquanto eram trazidas provas empíricas de que a nossa personalidade não era apenas constituída por dados da consciência do Eu mas também abarcava actividades de vastos domínios de acividades inconscientes da alma, como Sonhos, Visões, Fantasias espontâneas, Gestos involuntários, Sintomas corporais e outros factores que poderiam ter siginificados indirectos”(p.11).

Adiante anota como Jung, diferindo de Freud, vai entender estas manifestações como produtos de um inconsciente colectivo, pois em todos os indivíuos, em todas as comunidade e civilizações podem ser encontrados, como formas e estruturas de uma psique comum à espécie e não apenas a um único indivíduo, ou um caso em especial.

A estes produtos chamou arquétipos, e são arquétipos o que muitas vezes nos sonhos nos intriga. Marcas antigas, primitivas, primordiais, cuja decifração exige que se conheça bem a história das religiões, os mitos fundadores e a sua presença num imaginário colectivo e partilhado, universal.

Regresso então ao número 8 do meu sonho, deixando cair os zeros que seriam o seu reforço, mas notando que o número é feito da sobreposição de dois zeros, dois círculos, e que o círculo é num mandala a primeira forma perfeita de suporte do resto do desenho que se vai ampliar.

Ampliar (como na amplificatio dos alquimistas) é para Jung ao mesmo tempo aprofundar e abarcar o sentido do arquétipo que no sonho está contido. A lição que nos vai ser dada, se lhe prestarmos a devida atenção.

Alguns factos são importantes, no sonho:

O andar está à venda

Não aparece ninguém que ofereça o que vale

Só uma pessoa quis dar oitenta mil contos

Isso não interessa, prefiro esperar

Fixei o 8 

O andar é a casa, e a casa é a alma. Está em baixo o seu preço, mas eu desejo a venda...por um preço mais justo. Vou aguardar, isto é, assim não vendo. Acordo com o número na cabeça, e fixo-me no oito, na sua forma de duplo círculo, por um lado, mas indo procurar o que há sobre o simbolismo do 8 nos mitos fundadores, nas lendas mais antigas, nos textos sagrados, como a Bíblia, por exemplo.

Lemos no Antigo Testamento como a criação se deu em seis dias e ao sétimo dia Deus contemplou a sua obra e descansou. Mas o que se segue então, já que a criação não foi interrompida? Como é definido o oitavo dia? O que vê Deus ao acordar do seu descanso? Passeando no Jardim do Éden, pela brisa da manhã, vendo que Adão se escondia com Eva entre as árvores chama por ele: Onde estás?

Ouvi os teus passos no jardim, respondeu ele; e escondi-me porque estou nú. Deus fica assim a saber que tinham comido da árvore proibida, do conhecimento do bem e do mal, e assistimos então à Queda e expulsão do Paraíso (Génesis 3, 11).

Este é o oitavo dia, o do castigo da espécie humana, figurada neste par primordial de Adão e Eva, por terem caído na tentação da serpente, comer do fruto proibido desobedecendo ao imperativo divino, e sendo castigados e expulsos por isso de um Éden também ele mítico e primordial.

O 8 é aqui um número de transição: da imortalidade para a mortalidade do castigo.

Passando por enquanto adiante do seu significado nas tradições orientais, hindú  e budista, que valorizam a figura do octógono, coloquemos o número 8 na esfera de mediador ( mediação é também transição, de um modo para outro) entre o círculo e o quadrado, ou ainda, entre o céu e a terra, como o Génesis nos sugere indirectamente. Por outras palavras, com o número 8 entramos em relação com o chamado mundo intermediário e segundo alguns autores anuncia, no seguimento dos dias da criação, o futuro, que já é a Ressurreição de Cristo e através dele a Ressurreição do homem. Se o número 7 pertence ainda ao Antigo Testamento, o número 8 anuncia e pertence já ao Novo Testamento (Augustin Luneau, l’Histoire du Salut chez les Pères de l’Église, 1964, pp.338-339). Santo Agostinho sublinha essa ideia, de que para lá do sétimo dia, com o oitavo é marcado o momento dos Justos e a condenação dos ímpios.

Não seria possível eu esquecer, para além destas reflexões de inspiração de um imaginário cristão, o que é revelado no imaginário taoísta, chinês, do Yi King, que tantas vezes consultei. Até porque os conceitos de mediação, de transição, de transformação (que também implicam) fazem parte desse imaginário oriental, que ao fim e ao cabo deve, enquanto oposto (no sentido alquímico usual) completar um Uno e um Todo a que toda a transformação deverá conduzir.

É o momento em que regressamos ao sonho, e à indicação que do ponto de vista psicológico, simbólico, a imagem da casa que não se vende (a alma) e o 8 arquetípico, nos remetem para a definição e existência, em  nós, de um inconsciente colectivo que nas doutrinas de Jung e seus discípulos se pretendeu afirmar.

O Yi King foi uma das obras que Jung leu ou consultou, como diz na sua biografia, ao longo de toda a vida.

São, ao todo, 64 hexagramas. Entra neste total o desdobramento do 8: (8x8 = 64).

A questão do desdobramento é fundamental, pois de um Todo perfeito e fechado em si mesmo, nada pode nascer e transformar-se.

Para Étienne Perrot, o tradutor francês do Yi King, este “ é o mais antigo livro da China e também o mais moderno. O Yi King oferece ao homem uma chave nova  intemporal para penetrar o enigma do seu destino. Conduz-nos, para lá da teologia ou de um sistema filosófico, a um grau de profundidade límpida onde o olhar do coração contempla a evidência do verdadeiro. A unidade é o fundamento do universo. Mas, para ser fecundo, o T’ai Ki (o Grande Começo) tem de se sacrificar desdobrando-se, pois a partir do que é perfeito nada nasce.”

E observa adiante: “Os sessenta e quatro hexagramas, agrupando dois a dois os oito trigramas obtidos combinando de todos os modos possíveis as duas energias primordiais, formam uma imagem completa do mundo” (Yi King, Le Livre des Transformations, Paris,1971, xi).

Esta imagem completa do mundo é um arquétipo que estrutura uma narrativa fundadora do destino do homem, da espécie humana tal como toma consciência de si própria, da sua história e desenvolvimento, segundo os historiadores das religiões, como Mircea Eliade, ou os antropólogos do imaginário, como Gilbert Durand, ou os psicólogos

como Freud e Jung, sendo que este divergiu do seu mestre e amigo, quando lhe colocou a questão da existência de um inconsciente colectivo, transversal a toda a humanidade e revelando-se em mitos e lendas de todos os tempos e culturas, e nos sonhos mais complexos dos pacientes de que se ocupavam.

Para terminar, com a imagem da casa e do seu preço, recorro agora a Gaston Bachelard, outro dos estudiosos da simbólica do imaginário.

Em La Terre et les Rêveries du Repos (Paris, 1948) tem um capítulo dedicado à casa natal e à casa onírica (IV). Citando obras de autores significativos – e por aqui encontro tanto de um Rilke que também eu sempre recordo – Bachelard distingue a casa natal, pertencendo a um passado de infância, ou a um presente ainda vivido e apreciado como refúgio, espaço de ocultação ou de reflexão criadora, e a casa que define como onírica, aquela que nos sonhos é recuperada por um imaginário transformador  que se torna indispensável para um equilíbrio do passado com o presente, anunciando um futuro melhor que ainda espreita. Casa é raiz, casa é centro do mundo, casa é suporte de vida. No sonho opera-se uma identificação com essa imagem da casa. : “habitar oniricamente é mais do que habitar pela recordação” (p.98). Dei-me bem conta disso quando escrevi longamente, por várias vezes, sobre a casa da minha avó, em Tavira, o casarão enorme que ocupava duas ruas, perto da ponte do rio Gilão,  frente ao jardim da Alagoa, e onde cresci entre campo e mar, entre livros e fugas e me deixou esta memória que é saudosa e feliz.

Mas nada disto tem a ver com este sonho recente de um apartamento pequeno, onde nem vivo, quero vender, e não aparece ninguém que dê mais do que pretendo. O que se fixa é o número oito, e do número já falei.

Quando Bachelard refere as “impressões cósmicas desses longes oníricos” (p.102) sublinha que a casa se torna refúgio, retiro, um centro (sublinhado meu). E então os símbolos se estruturam, se organizam, isto é, adquirem o seu sentido. Compreende-se-melhor que as casas das grandes cidades apenas possuem simbólica social, “não se aproximam do onirismo profundo” arquetípico, digo eu, da casa completa, da que tem poderes cósmicos (p.103).

Não é completa uma casa que não tenha cave, uma escada que sobe até ao sótão, um telhado, simbolizando a cabeça do sonhador, as suas funções conscientes, enquanto a cave simboliza o seu inconsciente. Percebemos assim que viver num andar é viver longe do nosso mundo profundo, é, como diz Bachelard “viver confinado”, ou seja, entre as paredes que limitam esse espaço, por onde não se circula.: “ numa casa sem sótão sublima-se mal; uma casa sem cave é uma morada sem arquétipos” (p. 105).

Posso entender melhor, agora, por que razão o andar que desejo vender é mal valorizado: não é uma casa, é um espaço confinado, nele nem se caminha para uma sublimação nem se dá o entendimento do seu simbolismo profundo, o arquétipo primordial, fundador da casa onírica.

E o 8 que surge, como oferta, está, ao modo oriental, carregado de indicações, esse é o esforço que devo fazer, neste momento.

 

Y.K.Centeno

( 30 de Novembro de 2021)

 

[1] Excerto do romance inédito Para Acabar, de Yvette Centeno

 

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