MULHERES ESCRITORAS

Escritoras de língua portuguesa no tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo em Portugal, África, Ásia e países de emigração

 

 

Estava sentada à secretária, sofrendo o jugo das inquietações que me torturavam o espírito. Com o tronco curvado, os meus olhos buscavam nas entrelinhas do livro a imagem fantasmagórica que todas as noites se me revelava na penumbra do sono. Por baixo da cadeira, roçando pelos meus pés descalços com a delicadeza suave duma pluma, senti o pêlo de um gatito, rebento duma gata doméstica que há muito tempo era a minha companheira. Instintivamente, movi os pés e levantei os olhos do livro, para observar o amoroso animal. Procurei em redor. O simpático gatito que ainda há alguns momentos me acariciava, onde se teria metido? Acabei por descobrir uma cabecita redonda na qual luziam dois olhos claros, fixos em mim, como se quisessem sondar as profundezas da minha alma, a razão da minha enigmática atitude perante a vida. Depois, saíram das trevas do reposteiro, listrado de branco e castanho, mais uma, duas, três cabeças… À frente vinham dois animais donairosos, saracoteando-se em requebrados movimentos do tronco manchado de branco e negro. Atrás vinha a mãe, a gatarrona de pêlo luzidio e macio, qual paleta colorida que caprichosa mão de artista tivesse borrado sem nexo. Os pequenos felinos desataram numa corrida louca pela sala, para gastarem as energias que o leite materno lhes proporcionava. E a mãe, sentada sobre as patas traseiras, de tronco soerguido, altiva, satisfeita, contemplava os seus rebentos. Às vezes, algum dos pequenitos escondia-se debaixo do armário de castanho, e a gatarrona, como se temesse que o peso do móvel esmagasse o precioso fruto da sua maternidade, soltava um miau onde perpassava alguma preocupação. Quanto isso não bastava para chamar à ordem o gatinho irrequieto, corria até ao ponto onde convergiam as suas suspeitas. Então, como não podia meter a cabeça debaixo do armário de madeira de castanho rendilhada, limitava-se a espreitar com olhos ternos o filho escondido, que, sentindo-se assim perseguido pelo desvelo materno, abandonava o esconderijo.

Os gatitos andaram numa cabriolice interessante. Parecia que tinham vindo de propósito para me distrair com as suas momices. A mãe, essa, esteve sempre sentada, observando-os de olhos lânguidos. Estava, talvez, fantasiando obstáculos sem conta que os seus filhotes teriam de transpor, até os poder largar. Por vezes, a orla do reposteiro agitava-se nervosamente sobre as graciosas cabeças e ficava tremelicando até elas desaparecerem na penumbra do corredor. A gata, previdente, quebrava a serenidade do quadro que lhe servia de fundo, correndo atrás dos incautos. Metia a cabeça debaixo do reposteiro e espreitava o negro abismo, cujas fauces poderiam tragar os pequeninos… Depois, de novo, um ruído de passos minúsculos, perdendo-se na amplitude do espaço que penetrava janelas adentro, e sentia-se outra vez a agradável presença dos felinos. A gata retomava o seu lugar junto à porta que deitava para a varanda balaustrada, cujos pilares estavam, aparentemente, estrangulados alguns pela trepadeira viçosa, de campânulas roxas, e abraçados outros pela verdura do espargo.

Baixei-me para afagar um dos gatitos que roçou pelas minhas pernas. O maroto, porém, fugiu e, longe de mim, virou-se para me olhar nos olhos, com uma expressão de eloquente silêncio. A gata conservou-se no seu posto de observação, firme, levemente intrigada, mas confiante. O velho felino parecia gostar que mãos humanas acariciassem o seu filhote. E com que vaidade endireitou um pouco mais, tanto quanto possível, o tronco garboso quando, após um complicado jogo de polícias e ladrões, consegui prendê-lo nos meus braços. Depois, um outro escapou por artes mágicas à estranha omnipresença da mãe. Esta não sabia onde se tinha metido. Agitava o rabo nervosamente e nos seus olhos luzia uma sombria suspeita. Como uma trapezista adestrada, saltou e desceu bruscamente pela escada para onde o corredor se precipitava, mas voltou depressa. Num impulso, desatou a correr, farejando os móveis, embarrando-se nas portas, como se quisesse arrancar-lhe os puxadores e, com eles, talvez alguma pedra tumular que se interpunha entre ela e o filho tresmalhado…

A pesquisa foi infrutífera, mas a gata não desistiu. Convocou os outros filhos com um miau aflitivo, que ressoou na ampla sala. Eles acorreram, solícitos, saltando, cabriolando, esbarrando contra a mãe, que os beijou no focinho, certamente enquanto os advertia do perigo que corria o irmãozito. Seguiram-na, embora libertos do jugo que a oprimia.

Voltei então a mergulhar nas páginas do livro, mas os meus olhos recusaram-se a receber a mensagem que me transmitiam. Vi-me obrigada a fechá-lo. Cerrei as pálpebras e celebrei a conquista da minha sensibilidade, no vazio da minha existência de incerto futuro, devido a esta maldita doença de rumo imprevisível…

Isabel Gouveia

(Final de Dezembro de 1947)

Nota: Na data em que escreveu este conto, a autora sofria de uma doença, nesse tempo quase incurável (tuberculose pulmonar), que a obrigou a desistir de um curso na Faculdade de Letras e a matricular-se em Direito, como aluna voluntária.

 

Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito dos projetos UIDB/00657/2020 com o identificador DOI 10.54499/UIDB/00657/2020 e UIDP/00657/2020 com o identificador DOI 10.54499/UIDP/00657/2020.